Burnout: por que este diagnóstico tem sido cada vez mais frequente?

Sou nascida e criada em São Paulo. Vivi na periferia, onde a realidade é dura, quando falamos sobre acesso aos grandes centros. Duas horas, ou mais, para ir. Duas horas, ou mais, para voltar. Cresci assistindo ao esforço de trabalho do meu pai, marceneiro, fazendo de tudo para colocar comida na mesa. E da minha mãe, dona de casa, fazendo de tudo para dar o melhor a nós, em termos de cuidados. Aprendi que estudar muito e trabalhar muito era o único caminho justo, para mudar minha realidade. Passei anos exausta. Dormia nas viagens de ônibus. Fui furtada.  Assaltada. Trabalhei e estudei, tudo ao mesmo tempo. Após me formar em Psicologia, passei a trabalhar ainda mais. Muito mesmo. Além do reconhecimento financeiro, hoje, consigo entender: eu queria também o reconhecimento social.

Nesta toada, o burnout aconteceu pra mim, algumas vezes. Talvez a minha história seja muito parecida com a de diversos outros brasileiros. Principalmente, aqueles que moram nas periferias da metrópole cinza. Os resquícios do Brasil colônia ainda existe aqui e eu sou uma mulher branca, gozo de muitos privilégios. Imaginemos, então, a grande massa periférica, a maioria negros. Não tenho dúvidas, para eles, este cenário é ainda pior.

Resquícios culturais: tudo é história

Tudo é história e o nosso país respira abusos em todo seu funcionamento. Na política, na justiça, na economia e, claro, no trabalho. Ainda vivemos com resquícios da escravatura. Patrões pagam pouco para seus funcionários e cobram fidelidade. Os horários de trabalho são abusivos, como se os funcionários não tivessem vida privada. As condições de trabalho, muitas vezes, são precárias, como se o bem-estar dos funcionários não fosse importante. Você reconhece este cenário? 

É comum ouvirmos que em países de primeiro mundo, “a caneta cai” às cinco da tarde. Não tem a cultura da hora extra e nem do banco de horas. Email à noite é caso de urgência, do contrário, pode ser visto como deselegante. Mas a que custo estes países sustentam uma cultura de trabalho tão respeitadora assim? Muitas destas empresas, multinacionais, têm operações em países subdesenvolvidos como o Brasil, onde a realidade de trabalho é muito diferente. Aqui, a mão de obra é “mais barata”, o trabalho é impecável, tem qualidade e os funcionários ainda vestem “a camisa da empresa”. Bom, este cenário você reconhece, não é mesmo?

Pois é… Brasil não é para amadores, como dizem por aí!

“Vista a camisa!”: o perigo da cultura empresarial

Dos temas mais comuns, nas sessões de psicoterapia com meus clientes, está o trabalho. Em alguma medida, esta é uma dor para todos. Por isso, desde que comecei a trabalhar com Psicologia Clínica, há uma década atrás, passei a me dedicar um pouco mais na compreensão das políticas de trabalho. Dentre os pontos mais intrigantes do universo laboral, o discurso do “vestir a camisa” é o que mais me chama a atenção. 

Acho impressionante como as organizações constroem narrativas para tirar o maior potencial de seus colaboradores. “Vestir a camisa” nada mais é do que um jeitinho de fazer o funcionário acreditar que é dono da empresa, quando na verdade, todos sabemos: não é! Fico pasma ao ouvir, de vários clientes, o quanto este discurso está presente nas comunicações internas e nos momentos de feedback. Sem perceber, os trabalhadores estão, cada vez mais, dedicando-se ao ambiente de trabalho e a vida privada, a saúde e o bem-estar, passam a ocupar o último plano. 

O discurso do “ser dono” é tão perigoso que, no geral, atinge o emocional dos funcionários de forma muito nociva. A realidade que descrevi sobre a minha vida, no início do texto, acomete muitos brasileiros. Na verdade, a maioria de nós. Somos um país em desenvolvimento, a maioria de nós tem origens muito simples, história de restrições de recursos e uma base econômica pouco privilegiada. Histórias como essas faz de nós, “presas fáceis” para o sistema que quer, a todo custo, tirar o nosso melhor.

No meu processo de desenvolvimento pessoal, precisei mergulhar fundo na compreensão das minhas motivações para o trabalho. Com muita reflexão, encontrei uma Mariana ferida, que cresceu em meio a muitas restrições, que viu sua mãe ser dependente financeira. Alimentei em mim um desejo profundo de mudar a minha realidade e escolhi o trabalho como este meio. Com os meus pais, aprendi que trabalho é honra e que devemos ser competentes e dar o melhor. Minha versão profissional sempre foi muito focada, dedicada e responsável. Meus irmãos compartilham comigo desta realidade. Outros tantos pacientes que têm uma história parecida, também.

Acontece que, todos estes valores encaixam como luva no canto da sereia. O discurso de “vista a camisa, seja dono” ativa o senso de responsabilidade e o comprometimento de muitos funcionários. Num piscar de olhos, a autocobrança vai lá nas estrelas. O senso de responsabilidade não permite que muitos saiam do escritório sem ler ao último email, mesmo que não seja urgente. O medo de perder o recurso financeiro faz com que muitos dediquem-se indiscriminadamente ao trabalho, afinal, “não posso ser medíocre, tenho que me destacar!”.

Já me deparei com muitos pacientes que adoeceram, entraram em burnout, porque se perderam neste labirinto. A autoexigência e o senso de responsabilidade os aprisionaram. E os seus chefes e as empresas para quem trabalhavam, apenas aproveitaram do potencial que tinham. Sugaram o quanto podiam. Alguns, depois, foram despedidos porque não entregavam mais como antes. É muito triste ver este cenário. Mas é a realidade da nossa cultura.

Tá todo mundo querendo reconhecimento, mas de quem?

No fim das contas, a realidade da nossa cultura faz com que tenhamos muitas feridas profundas. Dentre elas, o desejo pela aprovação. A necessidade de se sentir parte de algo maior, de se sentir valorizado, é uma dor comum. Sobretudo para aqueles com histórias de vulnerabilidade social, fazer parte do “clube dos privilegiados” se torna um objetivo de vida. Não é apenas sobre viver melhor e ter mais recursos sociais. É também sobre receber o “prêmio de funcionário do ano” e as três batidinhas nas costas, dadas pelo CEO que não sabe o nome de ninguém.

Perdi as contas de quantas vezes, durante os meus atendimentos, vi pacientes exaustos – sim, eu disse EXAUSTOS -, comemorando o “parabéns” que receberam do chefe, do CEO, do cara com a ideia genial, que criou a brilhante startup. No fim das contas, sentir-se validado por alguém que está lá, no grupo seleto dos “grandes”,  dos “tubarões”, é quase como receber a benção de um grande mestre. O problema é que, na maioria das vezes, o reconhecimento vem acompanhado de meses e meses trabalhando duramente, sem vida social e com níveis de estresse elevadíssimos.

Ah! Não posso esquecer, o ciclo do reconhecimento não costuma acabar por aí. Contar para os amigos (que provavelmente estão girando na mesma roda) algo como “recebi o reconhecimento do ano”, “recebi o prêmio de talento da área”, “o CEO me parabenizou”, “fui contratado pela multinacional x, y, z”, coroa todo o ciclo do reconhecimento. Assim, com a cereja do bolo, trabalhar em excesso se tornou louvável.

Quanto mais estresse, mais produção

Você já percebeu que nos dias em que você tem mais tarefa, você produz mais? Já se deu conta de que com a agenda lotada, fica sempre mais fácil encaixar mais uma atividade? Mais uma reunião? Mais um almoço de trabalho? Pois é, a bioquímica do nosso corpo explica muito bem esse processo. Como uma máquina perfeita, nosso corpo se organiza sempre para nos manter “funcionando”, conforme solicitamos.

Para nos fazer funcionar, pela manhã, ele secreta o famoso hormônio do estresse, o tal do cortisol, já ouviu falar? A ideia é que tenhamos um pico, no início do dia, e conforme o dia vai passando, ele baixe, dando espaço para outros hormônios que nos farão entrar em relaxamento. O que tem acontecido é que as rotinas de trabalho têm sido tão cansativas, demandantes e longas, que nossos organismos têm sido uma máquina de cortisol. É por isso que eu conseguia fazer tantas coisas, ao longo do meu dia. É por isso que você consegue dar conta de todas as tarefas acumuladas em seu trabalho.

Não precisamos de muito para compreender que doses cavalares de estresse não são saudáveis para nosso corpo, não é? Um dia, ok. Dois dias, hummm ok. Semanas, meses, anos vivendo no extremo, provoca um nível altíssimo de inflamação crônica em nosso corpo. Dando espaço, então, para o desenvolvimento de várias doenças e transtornos (como ansiedade e depressão, por exemplo).

Bizarro dizer isso, mas me parece que o mundo do trabalho tem aproveitado muito bem do nosso “cortisol”. Cenários competitivos. Metas elevadíssimas. Números. Indicadores. Cargos de confiança. Tarefas desafiadoras. Bonificações. Prêmios. Feedbacks construtivos. São diversas as estratégias para elevar o estresse do trabalhador, sem que ele nem perceba. No frigir dos ovos, tá todo mundo adoecendo, achando que é “multitarefa”.

Trabalho e propósito: cuidado!

Outra narrativa muito perigosa é a do “propósito”. Esta, costuma acometer os trabalhadores autônomos também. Eu caí nesta falácia. Em determinado momento da minha vida, eu acreditava que precisava viver o “meu propósito” ao máximo. Fora isso, seria desperdício. Sim, o burnout não acomete apenas trabalhadores CLT! Ele acontece para todos que, de alguma forma, cultivam uma relação nociva com o trabalho. Eu acreditava piamente que estava dando o meu melhor. E estava. O meu melhor estava nas minhas sessões, em minhas supervisões e nas aulas que eu dava. O que sobrava pra mim mesma, era quase nada.

O mesmo acontece com muitas pessoas que trabalham no mundo corporativo. O que começou como uma tentativa de dar sentido a nossa força de trabalho, se tornou a justificativa romântica para exigir ainda mais dedicação, ainda mais horas de trabalho, ainda mais comprometimento e ainda mais exclusividade. O mundo dos negócios é mais esperto do que imaginamos. Os grandes líderes estão sempre encontrando mais formas de “acorrentar” os seus colaboradores. Extraindo, é claro, “o filé mignon” de cada um deles. 

 É um trabalho! Não é a sua vida!

O que tenho desenvolvido muito com os meus paciente é a “desfusão” da pessoa e do trabalho. Este é um conceito um tanto abstrato, mas importante de ser discutido. Nossas narrativas de vida nos conduzem, de algum modo, ao “atracamento” com o trabalho. Por muitos anos eu fui a Mariana Psicóloga. Nada mais além disso. Me reconhecia assim, vivia e respirava o trabalho. Crescemos entendendo que o trabalho é o nosso “bote salva-vidas”. Nos apegamos a ele, como se fosse parte de nós. 

Esta realidade só beneficia a um lado: as empresas. Quanto mais fusionados e atracados estamos ao trabalho, mais nos dedicamos e somos fieis a ele. Por isso, é tão importante nos descolarmos desta figura. Somos alguém, para além do trabalho que exercemos. O nosso trabalho, é o nosso trabalho. Não precisa ser a nossa única fonte de realização.

Amo ser Psicóloga, vejo muito propósito no que eu faço, também tenho reconhecimento financeiro, minha realidade social foi transformada através desta profissão. Mas, nos últimos dois anos anos, eu tenho aprendido a ser mais do que isso. Tenho me permitido me apaixonar por outras versões de mim mesma. Por mais estranho que possa soar, a minha mais nova paixão tem sido cuidar de mim mesma. Alimentação consciente. Pausas para atividade física. Sono de qualidade. Lazer. Leitura. Amigos. Como é que eu não me dedicava a tudo isso antes?

Aprender a reconhecer limites

Outra habilidade importante de ser desenvolvida é o reconhecimento de limites. O ciclo do estresse crônico nos faz confundir a nossa capacidade. É quase como se nos acostumássemos a fazer muito e entendêssemos, então, que podemos dar conta de tudo. É por isso que a “síndrome do super herói e da super heroína” tem sido tão comum em nosso meio social. Tá todo mundo acreditando que dá pra dar conta de tudo. E também está todo mundo frustrado, ao perceber que isso é uma falácia.

Aprender a respeitar os sinais que o corpo dá é um desafio imenso para a maioria dos meus pacientes. Estão todos acostumados a produzir freneticamente e mal observam o que estão sentindo. Este é o primeiro passo para aprender a reconhecer limites. O nosso corpo fala, mesmo que deixemos de ouvi-lo. Muitos pacientes, quando começam a perceber que as crises de ansiedade são um sinal de que este corpo está “no talo”, se surpreendem. Também se chocam, quando percebem que os problemas de pele, a insônia e o exagero alimentar são apenas consequências de um corpo que está pedindo socorro.

O próximo passo, então, é aprender a dizer não. Que desafio! Enfrentar todas as amarras do corporativo é um desafio homérico. Reconheço. Foi difícil dizer não pra mim mesma, uma vez que sou minha chefe. Imagine, então, dizer não para todo um sistema. É dureza. Desafiador demais. Mas é possível. Sou testemunha de várias histórias possíveis e me orgulho muito do esforço intencional de cada um destes clientes. 

Trabalho e Saúde Mental

A esta altura, você já entendeu a mensagem central deste texto: não tem como pensarmos em saúde mental, sem olharmos para o contexto laboral! É no trabalho que passamos boa parte do nosso tempo. É no trabalho que nos relacionamos. É por meio do trabalho que sanamos parte das nossas necessidades básicas. É por meio do trabalho que nos sentimos úteis socialmente. Mas não dá para romantizar todo este contexto. Os consultórios Médicos e de Psicologia estão lotados de pessoas “esvaziadas”.

Burnout não é “papinho de Psicólogo” e tem sido mais recorrente do que você imagina. Já acompanhei alguns pacientes que caíram neste buraco e a queda foi muito dolorida. O corpo entra “em pane”, toda aquela hiperprodutividade se torna um esvaziamento. O cansaço intenso, crônico e o perda de propósito chegam ocupando o espaço da rotina. Um dia você está lá em cima, no outro, você não consegue mais sequer pensar em produzir. O corpo padeceu. Recuperar vida, neste organismo, será, então, um trabalho duro e exigirá muitas mudanças. Mas como mudar, sem energia? Pois é…

A cultura do trabalho no Brasil – talvez no mundo – tem nos adoecido. Não dá mais para negar. Por isso, mantenha atenção nas contingências laborais em que você está inserido. Observe a dinâmica do seu dia a dia produtivo. Observe o que seu corpo tem comunicado. Reconheça as armadilhas do sistema. Mantenha o radar sempre ligado. Encontre espaço para ser você, além do que você produz. Apaixone-se por se cuidar.

Nossas corpos – e mentes – estão adoecendo. 

Esta conversa é inadiável.

Precisamos falar sobre isso.

Um abraço carinhoso,

Mari

Ps.: se  o teu contexto de trabalho tem te adoecido, não adie, buque ajuda! A saúde não pode esperar. Clique aqui para me escrever.

 

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