Imigrar: nem tudo são flores e a saúde mental é um ponto de fragilidade

“A maioria das pessoas pensa que morar fora é luxo, flores o tempo inteiro. Muitos acham que a minha vida é perfeita!”

Há alguns anos, atendo brasileiros que vivem fora do país. Neste período, perdi as contas de quantas vezes ouvi frases como esta. Países diferentes, culturas diferentes, famílias diferentes, mas a sensação é sempre muito parecida: a realidade é muito diferente do que pensam. A verdade é que a saúde mental dos imigrantes é um ponto de fragilidade e merece atenção.

A globalização trouxe, ao abrir fronteiras, a possibilidade de muitas pessoas imigrarem. Ou seja, deixarem o seu país para viver em um outro. EUA, Canadá, Portugal, Itália, Austrália, Inglaterra… Não importa qual o país, assim como eu, provavelmente, você também deve conhecer algum – ou alguns – imigrantes. Esta é uma realidade cada vez mais frequente em nosso ciclo social. Inclusive, ouso dizer, que será ainda mais frequente nos próximos anos.

No entanto, como sociedade, ainda temos muito o que aprender sobre o tema. Nossos amigos, irmãos, familiares, colegas vão embora, mas as famílias que ficam pouco sabem sobre esta realidade. A única coisa que sabem, obviamente, é sobre o desejo e o sonho de “viver melhor”. Talvez, por isso, muitos pensam que morar fora é garantia de felicidade.

Mas não é.

O desafio de deixar a “terra mãe”

 

Escolher viver fora não costuma ser uma escolha muito fácil. Até que aconteça o fatídico momento em que “se bate o martelo”, muitas ponderações são feitas. Prós, contras, vantagens e desvantagens. Em meio a todas as ponderações, é claro que o afastamento da “terra materna” é uma variável muito importante.

Para a maioria dos brasileiros que cresceram no Brasil, as práticas culturais e os vínculos afetivos construídos aqui se tornam a lente com que enxergarão o mundo. A chamada “terra materna” tem um poder afetivo-emocional muito intenso. Estar fora, sempre será “estar longe” de tudo o que é conhecido. Como muitos pacientes meus falam, “estar fora sempre será estar longe das nossas raízes”.

É claro, no balanço que se faz, ao tomar uma decisão como esta, muitos optam por sacrificar a proximidade com a “terra materna”. Abrem mão da comida com valor afetivo, do calor tropical, do carnaval, das festas de fim de ano em família, dos amigos de infância, do bairro conhecido e muito, muito, muito mais. Abrem mão, porque, no fim das contas, outros aspectos se tornam prioridade.

A verdade é que seguir sonhos não é tarefa fácil. Honrar valores pessoais está longe de ser apenas um movimento somente prazeroso. Muito pelo contrário.  Seguir valores, de modo geral,  envolve também muitos sacrifícios. Estar longe “das raízes” é apenas um deles.

A adaptação como imigrante

 

Além dos dissabores de estar longe da “terra materna”, morar em outro país é aceitar o fato de que você será sempre um imigrante. A depender de quão diferente é a cultura deste novo país, as diferenças podem ser ainda mais acentuadas. Deixar o país de origem é, no fim das contas, aceitar uma nova condição: a condição do imigrar.

Observo, acompanhando muitos imigrantes, que existem fases no processo de imigração. Para muitos, o começo é a fase de lua de mel. Tudo parece muito bacana, muito diferente, melhor. Aos poucos, a realidade começa a se sobrepor. As dificuldades na integração social aparecem. A diferença no acolhimento (comparando com nós brasileiros) passa a ser gritante. As burocracias assustam. O peso da saudade começa a aumentar. É aí que muitos imigrantes saem do período de lua de mel e começam a se questionar profundamente: “será que eu fiz a coisa certa?”. 

Muitos, nesta fase, desistem. Entendem que a imigração tem um preço muito alto. Outros, se esforçam para tentar se adequar ao novo contexto. Aprendem a lidar com frustrações profundas e desenvolvem uma habilidade invejável de resiliência. No entanto, apesar do esforço adaptativo, a certeza de que “sou imigrante” é persistente. Não que esta condição seja um demérito. De forma alguma. Mas, o que mais escuto dos meus pacientes é a famosa frase: “passe o tempo que passar, seremos sempre lembrados que não somos daqui! Qual o meu lugar no mundo, afinal?”.

Parece óbvio o fato de que esta é parte do preço a ser pago por estar fora. Mas, independente da consciência, este senso de “desconexão” dói. O desconforto é genuíno. Faz muitas pessoas sofrerem e a depender de como transcorre a adaptação, neste novo país, esta dor pode ser muito intensa. Podendo levar à depressão.

A perda dos vínculos mais profundos

 

Em outro post, falei mais profundamente sobre a importância das relações interpessoais para a nossa saúde mental. No texto, trouxe a metáfora do bolo, explicando a necessidade de termos relações de diversos níveis: mais superficiais (colegas), intermediárias (aquelas pessoas que temos um papo mais demorado, uma boa troca intelectual) e profundas (aquelas pessoas que nos conectem intimamente). A esta altura, você já pode imaginar o que acontece com as pessoas que decidem morar em um outro país, não é mesmo?

Além de se afastar da “terra mãe”, em termos culturais, se afastam de relações interpessoais que são muito importantes. Apesar da tecnologia, das video chamadas frequentes, o vínculo muda, se transforma. Estar longe, sem ter aquele amigo íntimo para bater um papo, pode ser muito dolorido. Perder o encontro das amigas, o colo no momento difícil, o suporte fraternal, o aconchego materno e a parceria paternal pode ser muito dolorido. Na equação da “imigração” ganha-se muito. Perde-se também. Em diversos sentidos. Também por isso, a sensação de solidão pode se agravar. Com ela, as portas para a depressão se abrem ainda mais.

Muitas pessoas cometem o erro de achar que “brasileiro tem em todo lugar, basta fazer novas amizades!”. Mas a verdade é que nem sempre é tão simples assim. Conheço muitas histórias de brasileiros imigrantes que tentaram se aproximar de outros conterrâneos e foram recebidos de forma muito negativa. Definitivamente, nascer no mesmo país não é sinônimo de amizade garantida. É claro, muitas vezes, funciona. Mas não podemos generalizar.

Existem muitas variáveis que favorecem ou não a construção de novos vínculos, em um novo país. A idade, status civil, filhos, idade dos filhos, condições financeiras, ambiente de trabalho, grau de escolaridade e, obviamente, características pessoais. A depender da combinação destas variáveis, “fazer amizade” pode ser mais fácil ou mais difícil. De modo geral, o que converso sempre com os meus pacientes é que eles devem fazer um esforço intencional e planejado, para se integrarem socialmente. Como você pode imaginar, não é simples ou fácil. Requer dedicação e muita disciplina.

Como equilibrar mais este pratinho junto com toda a adaptação? Pois é… não parece tão simples…

A sensação de impotência por estar longe

 

A vida não para porque alguém mudou de país. A família e os amigos do imigrante continuam vivendo, seguindo o fluxo que suas vidas impõem. Aqui nasce mais um desafio: lidar com a sensação de impotência quando alguma das pessoas amadas passa por um momento difícil no Brasil. Problemas de saúde, divórcio, morte, luto, assalto, mudança de fases, desemprego etc. São muitas as situações em que o coração do imigrante fica apertadinho, ao se ver longe e impotente. 

Tive a oportunidade de “vivenciar”, com alguns pacientes, momentos muito difíceis. Casos de doenças graves e hospitalização de familiares e, também, a perda de ente queridos. Em alguns casos, estes pacientes não podiam entrar num avião e aterrizar no Brasil após algumas horas. Por restrições financeiras ou burocráticas (visto de permanência), não poderiam estar presentes em momentos tão delicados. O que se faz nesta hora? Como lidar com a dor da impotência? Como não se julgar ou se achar egoísta por estar longe?

É neste momento que os questionamentos todos vêm à tona e, no geral, os imigrantes passam a questionar suas próprias decisões. Como terapeuta, devo confessar, é angustiante assistir ao desconforto da “impotência”. Ao mesmo tempo, é sempre importante revisar os “porquês”, os motivos daquela decisão. As verdadeiras razões pelas quais aquele “custo alto” foi escolhido.

Falta rede de apoio, privação afetiva na imigração

 

O contrário também é verdadeiro. O imigrante que está longe da rede de apoio também corre o risco de passar por contextos delicados. Muitos, passam por doenças, perdas, separações, puerpério, abusos e preconceitos, sem o suporte acolhedor das pessoas amadas. O que sempre escuto é que “é muito duro chegar o fim de semana e não ter um colo seguro para se aconchegar!”. Como falei anteriormente, a necessidade da adaptação faz com que muitas destas pessoas desenvolvam tamanha resiliência.

Com a falta de colo, alguns se tornam “casca grossa” e, por isso, muitas vezes se fecham em suas “conchas”. Outros, buscam relações desesperadas e se relacionam íntima e afetivamente de forma muito rápida, colocando-se, muitas vezes, em risco. Já acompanhei pacientes imigrantes solteiros que, por conta da necessidade de segurança afetiva, decidiram dividir casa e contas com pessoas que tinham acabado de conhecer. Alguns destes casos, obviamente, tiveram desfechos muito ruins. 

A privação afetiva é um perigo quando se está sozinho num lugar “desconhecido”.  A sensação de desproteção é muito intensa, amedronta. Por isso, muitas pessoas (principalmente as que imigram sozinhas) ficam mais vulneráveis neste processo. Os que imigram em casal, com ou sem filhos, no geral, criam uma relação ainda mais intensa. O que pode ser muito bom, quando falamos sobre parceria e intimidade. Mas, pode ser muito prejudicial, também, quando falamos sobre a “restrição” do casal. Ou seja, muitas vezes, se tornam co-dependentes. 

Imigrar é levar o relacionamento até as últimas consequências

 

Ainda neste sentido, importante citar o desafio vivenciado pelos casais imigrantes. Por estarem restritos socialmente, principalmente nos primeiros anos de imigração, o relacionamento é “levado até as últimas consequências”. O casal passa a fazer tudo junto, o tempo inteiro. Se restringem um ao outro. Em alguns contextos, a depender de como a adaptação local acontece, este período é mais curto. Em outros contextos, quando a adaptação é mais dolorida, a co-dependência pode se arrastar por muito tempo. Alguns casais superam. Outros não.

O ponto em questão é a perda da individualidade. Por viverem muito juntos, as bordas todas se cruzam, de modo que os dois podem se sentir “perdidos” de si mesmo. O cenário em que uma das partes se adapta mais rápido que a outra, também é bastante comum. Já acompanhei casos em que um dos cônjuges trabalhava, enquanto a outra pessoa passava o dia em casa. Com o tempo, a discrepância na adaptação de um e do outro ficou imensa. Nestes casos, como você pode imaginar, a crise no casamento é garantida.

Insegurança, receio de estar só, medo do abandono são emoções que vêm à tona. Em muitos casos, inclusive, a dependência financeira pode complicar ainda mais a equação. Já acompanhei pacientes mulheres que imigraram com seus maridos, por conta de oportunidade no trabalho deles. Com o desejo de fazer algo pela família e pelo companheiro, abandonam seus trabalhos e passam a viver economicamente dependentes. Em muitos casos, funciona. Em outros, pode ser um grande problema. A dependência financeira pode potencializar as dificuldades na adaptação cultural.

A saudade do país de origem: “Não vejo a hora de voltar para o Brasil!”

 

Esta frase é comum depois de algum tempo de imigração. A saudade de se sentir em casa aperta! Mas o retorno pode ser muito especial e também muito difícil de lidar. O mix de sensações é intenso. Alegria por encontrar pessoas amadas. Medo da violência. Empolgação para “aproveitar” tudo o que puder, desde eventos, encontros à gastronomia. Dúvidas sobre o quanto o “calor humano é importante, será que eu deveria voltar?”. Angústia por se sentir “deslocado”, mesmo recebendo muito amor.

São muitas as emoções que inundam o coração do imigrante que visita o Brasil. E esta experiência pode ser ainda mais desafiadora, quando a família e os amigos não entendem todo o cenário. Muitos imigrantes se sentem pressionados ao receberem questionamentos da família: “por que você não larga de bobeira e volta logo?”. Já vi muitos pacientes sofrendo, também, por não se sentirem acolhidos emocionalmente em relação aos desafios de estar fora. Muitos me falam: “Mari, ninguém me pergunta como eu estou! Todos pressupõem que a minha vida é perfeita!”.

Este pressuposto irreal faz com que muitos imigrantes se sintam ainda mais desconectados. Como consequência, mais e mais questionamentos se alojam em seus pensamentos. Se sentem, inclusive, inadequados ou errados por terem escolhido viver fora. Quase como se fossem “a ovelha a negra da família”.

Então, só tem coisa ruim?

 

Se você é imigrante, provavelmente se identificou com boa parte do que leu até aqui. Apesar de eu ter citado muitos desafios, você sabe da parte que “vale a pena” e do quanto, no fim das contas, passar por tudo isso é o preço para viver um sonho. Se você não é imigrante, mas me leu até aqui, deve estar se questionando: “mas só tem coisa ruim no imigrar?”. A verdade é que não. Mas achei importante escrever sobre a perspectiva de quem desmistifica a falsa ideia de que a vida no exterior é um mar de rosas.

A Saúde Mental do imigrante é um tema muito complexo, e deveria fazer parte das nossas conversas cotidianas. Sobretudo para aquelas pessoas que têm amigos ou familiares imigrantes. Debater o tema e “tentar calçar os sapatos” destas pessoas é uma forma muito acolhedora de apoiá-los. Arriscar viver longe, topar essa aventura e abraçar todos os riscos é um movimento muito louvável. No fim das contas, todos estão buscando viver uma vida cheia de sentido.

Por isso, se você não é imigrante, mas conhece um, se esforce para se conectar. Demonstre a sua empatia e conexão. Ligue com frequência. Bata-papo. Se interesse genuinamente. E, se você que me lê agora, é imigrante, busque afago da sua rede de apoio já conhecida, mas tente ampliá-la também. Nesta nova fase da sua vida, é importante que você busque pessoas que se identificam e conheçam as suas dores. Não se esqueça que a terapia também pode ser este espaço de acolhimento, encorajamento e autocuidado.

Imigrante, todos os pontos que descrevi neste texto – e muitos outros que não contemplei aqui – são variáveis que colocam a sua Saúde Mental em risco. Não espere a ansiedade e depressão se alojarem para buscar ajuda. Não espere a carência te colocar em risco, para levantar a mão. Não precisa vestir a capa de super heroi ou da super heroína. Tua experiência no exterior pode ser mais leve e significativa, se você se permitir ter companhia neste processo.

Clique aqui, para conversarmos. Será um prazer ter conhecer melhor.

Um abraço carinhoso, 

Mari

Burnout: por que este diagnóstico tem sido cada vez mais frequente?

Sou nascida e criada em São Paulo. Vivi na periferia, onde a realidade é dura, quando falamos sobre acesso aos grandes centros. Duas horas, ou mais, para ir. Duas horas, ou mais, para voltar. Cresci assistindo ao esforço de trabalho do meu pai, marceneiro, fazendo de tudo para colocar comida na mesa. E da minha

Leia Mais »

Imigrar: nem tudo são flores e a saúde mental é um ponto de fragilidade

“A maioria das pessoas pensa que morar fora é luxo, flores o tempo inteiro. Muitos acham que a minha vida é perfeita!” Há alguns anos, atendo brasileiros que vivem fora do país. Neste período, perdi as contas de quantas vezes ouvi frases como esta. Países diferentes, culturas diferentes, famílias diferentes, mas a sensação é sempre

Leia Mais »

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

×