Quantas vezes você já ouviu – ou até disse – algo como: “Ah, eu vivi dificuldades na infância, mas eu sobrevivi.”; “Ah, hoje tem muito ‘mimimi’, isso acontecia lá atrás, e todos sobrevivemos, estou aqui firme e forte.”; “Imagina, minha infância foi tudo bem, a gente dava um jeito de lidar com o que não tinha, de lidar com essas situações difíceis e deu tudo certo. Eu estou aqui agora.”
Muito cuidado ao subestimar as suas experiências traumáticas!
Frases como essas são muito comuns dentro e fora do contexto terapêutico. Eu já ouvi de muitas pessoas, em diversas situações, sejam elas informais ou durante meus atendimentos. Provavelmente, você já deve ter ouvido ou até dito algumas delas também, não é mesmo? Mas apesar de serem comuns, não quer dizer que não merecem ser analisadas com atenção.
O fato é que essas frases passam uma falsa sensação de que, por termos “sobrevivido”, porque estamos aqui hoje, apesar das dores que passamos na infância e adolescência, elas não tiveram consequências significativas em nossas vidas. Este post é para te dizer que SIM, as nossas experiências traumáticas, as experiências difíceis que vivemos nestes períodos tão importantes, como a infância e a adolescência, deixam marcas profundas e consequências que merecem atenção.
Apesar das consequências serem diversas e muito significativas, muitas vezes, não conseguimos fazer a conexão entre as feridas que foram abertas no passado e as dificuldades que enfrentamos no momento presente. Sem nem perceber, separamos – mentalmente – as nossas primeiras experiências de vida, deixamos elas numa caixa de memórias antigas e – erroneamente – achamos que elas não nos influenciam mais. Contudo, não é por isso que podemos ou devemos concluir que as experiências lá de trás não tiveram efeito, porque eu tenho certeza: tiveram!
Em outros textos, já comentei sobre a capacidade de adaptação do nosso organismo. Ele sempre tenta se adaptar. Sempre. E é por isso que a gente sobrevive. É por isso que, apesar das dificuldades, chegamos até aqui. O nosso organismo sempre vai dar um “jeitinho”, sempre vai encontrar formas de se adaptar por mais hostis que eles sejam os contextos. O que eu quero dizer com isso? Por exemplo, se crescemos num ambiente sem afeto, nosso organismo encontra maneiras de se adaptar, provavelmente cresceremos sem a habilidade de expressar as nossas necessidades. Se crescemos em um ambiente violento, as chances de reproduzirmos violências é muito alta (um bom exemplo são os índices altíssimos de violência contra as mulheres) . E, se crescemos em um ambiente onde não há espaço para exprimir os sentimentos, cresceremos sem desenvolver a habilidade de expressar emoções.
Mas é importante lembrar: tudo isso não passa por um contexto consciente. Não escolhemos, deliberadamente, essas formas de adaptação. Cada um encontrará um jeitinho de sobreviver de acordo com as condições e características que tem. Inclusive, pessoas que viveram um ambiente familiar caótico, com violência doméstica, por exemplo, podem se adaptar a este contexto de formas muito diferentes. No entanto, independente das adaptações, é importante considerar que elas sempre virão carregadas de efeitos colaterais.
As consequências são diversas e acabam ficando pelo meio do caminho: dificuldade de criar vínculos profundos; perfeccionismo exacerbado; a necessidade de agradar o outro o tempo inteiro; dificuldade de colocar limite; medo intenso de ser abandonado e as tentativas desesperadas de fazer o outro ficar; o excesso de trabalho; a agressividade nas relações; a ansiedade, hipervigilância; as tentativas de controle de tudo e de todos; dificuldade de dormir, de entrar em relaxamento; as dores crônicas; imunidade frágil e muito mais.
Talvez você conheça parte deste cenário. Talvez você experiencie estas dores. Sim, todas elas, geralmente, estão relacionadas a contextos e experiências traumáticas. Sobretudo, na infância e adolescência. Como terapeuta, escuto todos os dias narrativas assim. E, como eu trouxe no início desse post, a maioria das pessoas não faz essa conexão entre a experiência do passado e o momento presente.
Sim, você so-bre-vi-veu. Mas a que custo?
A que custo o seu organismo vem tentando se adaptar?
Negar um trauma não irá apagá-lo. Mas reconhecer, nomear e cuidar deste trauma fará com que você, de alguma forma, cuide das consequências que essas feridas provocaram. Não invalide as suas dores. Não subestime as suas experiências traumáticas. Elas podem dizer muito sobre os desafios que você tem enfrentado hoje.
Meu convite a você é sobre enfrentamento. Não jogue essas experiências para baixo do tapete. Olhe para elas, por mais que doam. Revisite. Dê contorno. Dê colo. Dê acolhimento. Compreenda, nomeie cada uma delas. Busque ajuda, se for necessário. Mas não finja que elas não aconteceram. Não conclua que elas não tiveram consequência, só porque você “sobreviveu”.
Me coloco à disposição para te ajudar nesta jornada. Clique aqui para entrar em contato comigo.
Abraço carinhoso,
Mari